Capítulo da dissertação de mestrado de Felipe Fonseca, REDELABS.
Atualmente, diferentes iniciativas no mundo inteiro têm usado a imagem do laboratório, ou "lab", para identificar a si próprias ou a ações que desenvolvem. São usualmente espaços - utilizados de forma temporária ou permanente - dedicados à produção colaborativa transdisciplinar, em especial aproximando profissionais de artes, design, tecnologia, educação e ciências, entre outras áreas. Apesar da utilização de uma denominação comum, o universo de iniciativas que se identificam como laboratórios é significativamente amplo e diverso. O lab cristaliza-se de maneira particular para cada contexto em que surge.
Neste capítulo trato de delimitar o objeto de minha pesquisa refletindo sobre uma série de desenvolvimentos ocorridos no Brasil, desde o começo da década passada até os dias de hoje, que articulam a ideia de laboratório experimental ligado ao campo da cultura digital. Dedicarei para isso especial atenção a duas construções em particular: a primeira, o campo da inclusão digital, reúne iniciativas que teriam por objetivo justamente incluir em uma suposta "era digital" parcelas da população que não teriam acesso a tecnologias de informação e comunicação por seus próprios meios. Interessa-me especialmente nesse contexto a ideia de uma cultura digital tipicamente brasileira, e uma série de projetos que surgiram ligados a esta ideia. Já a segunda construção é mais difícil de classificar e delimitar, uma vez que não envolve instituições específicas ou mesmo objetivos claros. Consiste pelo contrário em um conjunto de intenções que, na falta de termo mais preciso, vou chamar de "experimentais". Vão desde o uso crítico de tecnologias descartadas até trabalhos de arte eletrônica, passando ainda por iniciativas de ativismo midiático, de educação sobre tecnologias de informação e até do desenvolvimento propriamente dito de tecnologias livres e de código aberto.
Esses dois movimentos - a inclusão e a experimentação - formam as bases sobre as quais uma série de projetos importantes se desenvolveram no Brasil durante essa época. Diversos formatos de arranjos criativos se formaram sobre elas. Tais arranjos, que em minha opinião têm características únicas em relação a outros contextos no mundo, identificam-se em determinados momentos como laboratórios experimentais, labs de mídia, hacklabs ou afins. Interessa-me justamente o surgimento da imagem do laboratório dentro da confluência entre arte, ativismo, educação, políticas públicas e desenvolvimento de tecnologias livres no Brasil. A partir do momento em que passam a se identificar como labs, tais iniciativas de certa forma afiliam-se a um histórico de colaboração interdisciplinar que deu origem a formações institucionais específicas em diferentes partes do mundo. No capítulo seguinte darei maior atenção aos processos de formação e desdobramentos deste contexto internacional. Por enquanto, pretendo concentrar-me na interpretação linear que, de forma algo submissa, entende os arranjos experimentais brasileiros como mera consequência desses desenvolvimentos internacionais. Neste capítulo busco problematizar esta interpretação. Tomo por fonte meu próprio envolvimento com tais campos no Brasil para identificar momentos em que o laboratório foi utilizado como definição relevante para modos de pensar e produzir, a partir de uma série de dinâmicas internacionais mas também ligado profundamente a questões locais. Para isso, o capítulo fará uso frequente de relatos pessoais. A intenção é utilizar minha proximidade com o objeto da pesquisa para oferecer uma perspectiva "de dentro", ao mesmo tempo em que também tento me distanciar com o objetivo de obter uma visão mais abrangente de contexto e dinâmicas.
Desde o início da década passada, estive pessoalmente envolvido com o cenário que posteriormente viria a ser conhecido como "cultura digital brasileira". É um campo que adota um discurso no qual evoca-se uma inventividade que seria particular das culturas do Brasil, em especial na maneira como práticas inovadoras cotidianas - como o mutirão e a gambiarra[1] - transpõem-se para as novas tecnologias de comunicação e informação. Projeta também um discurso que remete à apropriação antropofágica, traço supostamente característico das culturas brasileiras[2]. E dá especial importância ao papel das tecnologias livres e de código aberto. A cultura digital brasileira envolve pessoas situadas em diversos contextos sociais e institucionais: grupos dedicados ao ativismo de mídia, coletivos artísticos, escolas e departamentos universitários, empresas de tecnologia e comunicação, instituições sociais, departamentos de governo e outros. Assumem grande importância neste contexto algumas ações capitaneadas e desenvolvidas durante algum tempo pelo Ministério da Cultura do Brasil, como a ação cultura digital no programa Cultura Viva, e posteriormente as duas edições do Fórum CulturaDigital.Br.
Mesmo com o (ou por causa do) peso de uma instituição pública federal, o discurso da cultura digital brasileira foi também adotado por diversos coletivos, organizações de terceiro setor, empreendedores criativos, produtores e fazedores culturais. Na voz de tais atores, costumam ser recorrentes temas como licenças abertas e cultura livre, redes colaborativas, diversidade cultural, autonomia, apropriação crítica de tecnologias, arte eletrônica, ciência cidadã, entre outros. Na maneira como desenvolvem suas ações, podem-se identificar dois movimentos distintos. Não tanto como categorias demarcadas, mas principalmente como tendências ou horizontes de pensamento e ação. O primeiro movimento, que chamo aqui de "compensatório", busca em última instância reduzir as desigualdades criadas historicamente na maneira como as tecnologias são adotadas na sociedade, e com isso oferecer oportunidades de transformação para determinados grupos sociais. O segundo, que denomino "exploratório", avança em direção a possibilidades e sentidos ainda não estabilizados das novas tecnologias. Os dois movimentos frequentemente operam juntos, oferecendo vocabulários e modos de ação complementares. É também comum que o contato entre essas diferentes visões ocasione alguma tensão. Minha interpretação é que essa tensão pode em algumas ocasiões ser criativa e produtiva. Vou deter-me um pouco mais nas características desses dois movimentos.
A primeira das tendências formadoras de um discurso da cultura digital brasileira se concretiza nas ações agrupadas em torno de uma ideia expandida de inclusão digital. São ações que baseiam-se na compreensão de que as tecnologias de informação e comunicação criam possibilidades que - por diversas razões - são desejáveis para a sociedade como um todo, e buscam incorporar a tais dinâmicas grupos sociais que de outro modo não teriam acesso a elas. Argumentam também ter por objetivo equilibrar o impacto que a disseminação das novas tecnologias tem sobre as populações e o planeta. A ideia do acesso às tecnologias de informação e comunicação como um direito fundamental está muito presente nesse discurso, que toma corpo em projetos e programas de organizações governamentais e sociais.
Uma observação relevante é a maneira como esse tipo de iniciativa tem se sofisticado ao longo dos últimos anos. Inicialmente adotavam uma postura fortemente condicionada pela ideia da inclusão em padrões idealizados da vida contemporânea. Em outras palavras, traçavam um paralelo com campos nos quais a exclusão é facilmente verificável a partir de indicadores claros: grau de escolaridade, renda, emprego, acesso a serviços de saúde, ingestão diária de nutrientes, etc. Com base nessa visão, tentavam continuamente estabelecer o que seria um nível ideal de inclusão na tal sociedade da informação - fosse a presença de computadores em espaços públicos ou nos lares, a familiaridade com mouse e teclado, o acesso à internet, o uso instrumental de um ou outro sistema operacional ou software. Tal padrão hipotético e largamente arbitrário costumava naturalmente demonstrar-se fugidio e cambiante. Essa primeira visão de inclusão digital constituia na verdade em uma leitura superficial sobre as possibilidades das tecnologias, baseada na ideia de que o uso típico das classes dominantes deveria ser meramente (e caricaturalmente) repetido de forma ampla através de todas as camadas da sociedade. E ainda assim, de maneira limitada: frequentemente aqueles projetos expressavam a visão de que as populações "incluídas" deveriam ser ostensivamente conduzidas e monitoradas, para garantir que não acessassem pornografia, violência, conteúdo "de mau gosto", etc. Muitos deles também coibiam a busca de arquivos de áudio e vídeo, com a justificativa de que não deveriam incentivar a "pirataria"[3].
Na visão desses primeiros projetos, o acesso à internet deveria ser instrumentalizado, como uma ferramenta que permitiria às camadas desfavorecidas adquirirem condições de conquistar um emprego, ou melhorar aquele que já tinham. O útil, o produtivo, o que proporcionasse a adaptação a uma economia de mercado, seria muito mais importante do que o ócio, o inútil, o improdutivo, e por extensão o questionador, o desviante. Naquela época[4], praticamente todos os projetos de inclusão digital estavam baseados no acesso a e ao treinamento em softwares proprietários, em particular o sistema operacional Windows e o pacote de aplicativos Microsoft Office. Os responsáveis por tais projetos argumentavam que utilizar softwares livres, supostamente mais complexos e heterogêneos, além de menos populares no ”mercado”, afastaria os projetos de seus objetivos principais: incluir grupos desfavorecidos em um suposto funcionamento típico da economia formal.
Obviamente entra em jogo aqui um aspecto de conformação ao sistema político-econômico internacional. Do ponto de vista daqueles projetos, a sociedade deveria voltar todos os seus esforços para a produção de riqueza, que seria a medida última da relevância de qualquer esforço humano. Segundo esta lógica, os interesses dos grandes grupos econômicos deveriam "naturalmente" ser os interesses de toda a sociedade. Por extensão, os países dominantes, transformados em economias pós-industriais, seriam o ideal de desenvolvimento e assim determinariam as aspirações de todo o restante do mundo. Às sociedades "em desenvolvimento" como o Brasil restaria o papel de gradualmente transformarem-se em réplicas dos países ricos, deixando de lado sua informalidade e falta de organização. Deveríamos, sugeria-se então, ansiar por tornarmo-nos uma sociedade estável e estruturada, com instituições confiáveis - o Estado, a Escola, as Empresas, talvez a Igreja. Por extensão, às populações periféricas também se imporia a mesma necessidade: ou se enquadram ao padrão, ou continuam de fora. Existiria somente um caminho para o futuro.
De acordo com aquele ponto de vista, as tecnologias digitais cumpririam unicamente um papel já definido e claro: aumentar a produtividade da economia. À população caberia o papel de aprender o suficiente para operar como engrenagem da máquina, e nada além disso. É esta, de fato, a plataforma ideológica em que se formaram as primeiras iniciativas de inclusão digital, surgidas no fim dos anos noventa do século passado com forte participação de um imaginário corporativo e comercial. Uma iniciativa representativa desse tipo de pensamento eram as EICs (Escolas de Informática e Cidadania) do CDI (Comitê pela Democratização da Informática). Em sua versão pacificada de empreendedorismo social patrocinado por empresas como a Microsoft, toda a tensão social, todo o paradoxo da representação política e toda a falta de esperanças das periferias eram substituídos por fotografias de adolescentes homogenizados - seja pelo sorriso, pelos uniformes, pela pose confiante ao lado do computador – que estariam ”aprendendo habilidades essenciais para serem inseridas no mercado”. Pouco se comentava que ter acesso a um computador não resolvia outras razões que dificultavam seu acesso a um emprego: a cor da pele, o endereço em que viviam, as gírias que usavam no dia a dia. Eram projetos de inclusão digital que certamente resultavam em alguma transformação pontual, mas que em geral não questionavam seu próprio papel de preparadores de mão de obra – agora ligeiramente qualificada – a ser assimilada pelo próprio sistema que originou sua exclusão. Eram, portanto, projetos extremamente conservadores, à medida em que seus beneficiários conseguiriam no máximo ocupar postos subalternos na economia globalizada contemporânea.
Ainda assim, os diferentes projetos e programas atuando no campo da inclusão digital – naturalmente tributários em alguma medida daquelas primeiras experiências - foram ao longo dos anos dialogando progressivamente com setores que traziam consigo décadas de acúmulo sobre participação popular, colaborativismo e combate a desigualdades: movimentos sociais urbanos e do campo; grupos de ativistas, teóricos, artistas e educadores. Frequentaram o Fórum Social Mundial. Trocaram experiências com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o movimento Hip Hop, as lutas pela igualdade racial, pelos direitos LGBT e pela diversidade cultural, a economia solidária, entre outros. Assistiram a transformações sociais profundas à medida em que programas sociais de grande escala abriam o horizonte de oportunidades da população. Com isso, foram transformando suas práticas e as narrativas que as acompanhavam, além de adquirir - e usar conforme viam necessário - vocabulários carregados de construções oriundas das lutas sociais. A gradual adoção do software livre em iniciativas de inclusão digital deve-se em parte a essa aproximação. Lideranças do emergente movimento do software livre passaram a ir além da mera argumentação técnica. Acompanharam a adoção do ideário do software livre por lideranças políticas ocupando cargos de peso. Passavam a usar termos-chave como autonomia, desenvolvimento local, colaborativismo, cultura digital e economia do comum. Assim construía-se a viabilidade política do software livre. É óbvio que não se deve esquecer o papel do próprio desenvolvimento dos sistemas operacionais e aplicativos livres e de código aberto, que se tornavam mais fáceis de instalar, configurar e usar. Mas o componente político e o cultural tiveram grande peso para a adoção e a disseminação do software livre no Brasil.
De importância significativa na formação da ideia de uma cultura digital brasileira foi o papel assumido pelo Cultura Viva, do Ministério da Cultura. O programa estabelecido em 2004 ofereceu apoio à transformação de centenas - posteriormente milhares - de projetos culturais de todas as regiões do país em Pontos de Cultura, aos quais era oferecido um pequeno orçamento, alguma infraestrutura e a participação em uma rede de articulação colaborativa. O Ministério era então comandado por Gilberto Gil, músico que décadas antes havia sido um dos principais nomes do Tropicalismo[5].
Logo em seu discurso de posse, Gil já afirmara que o Ministério deveria "fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. (...) Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares e informações e tecnologias de ponta" (MOREIRA, 2003). A postura do Ministro sugeria uma perspectiva abrangente de cultura em oposição à visão mais tradicional de política cultural que a associava somente ao financiamento da produção de arte e entretenimento. O programa Cultura Viva, após um período de elaboração coletiva, também adotaria uma estratégia de utilização de ferramentas digitais baseadas em software livre e aberto, e nas ideias colaborativas que elas representam (FOINA; FONSECA; FREIRE, 2005). A partir daquela época e durante alguns anos, o Ministério da Cultura tornou-se um loquaz apoiador da disponibilização de produções culturais através de licenças abertas como Creative Commons e similares. Os Pontos de Cultura recebiam equipamentos de produção multimídia: câmeras, mesas de som, impressoras e estações de trabalho configuradas com GNU/Linux. Seus integrantes participavam de encontros e processos de formação nos quais as tecnologias eram apresentadas não como meros instrumentos de trabalho, mas fundamentalmente ferramentas de expressão, engajamento e mobilização, adaptáveis aos diferentes contextos. Esses encontros dialogavam com uma série de eventos e projetos independentes desenvolvidos por redes de ativismo midiático (FONSECA, 2008).
Apesar das inúmeras dificuldades de gerenciamento que o projeto Cultura Viva enfrentou[6], ele possibilitou que centenas de pequenas organizações culturais tivessem acesso a tecnologias de informação baseadas em software livre e em dinâmicas de organização e aprendizado em rede. O peso institucional do Ministério da Cultura e o papel pessoal do próprio Ministro também fizeram com que temas como a livre distribuição de conteúdo com licenças abertas tivessem alguma penetração na opinião pública, inclusive internacionalmente[7]. O entendimento da apropriação de novas tecnologias como legítima manifestação cultural contemporânea consolidou uma visão da inclusão digital que permite traçar rotas de escape do enquadramento no modelo "mercado, utilidade e produtividade". Hoje, um conjunto de práticas em relação às novas tecnologias que enfatiza suas possibilidades políticas e culturais - a participação, a abertura, a diversidade, a articulação em rede e a colaboração - foram espontaneamente incorporadas na construção da ideia de uma cultura digital particularmente brasileira.
Como referido anteriormente, além da inclusão digital como postura compensatória existe também outro horizonte de atuação cujo foco não é a mera inserção de mais pessoas em possibilidades já estabelecidas das redes conectadas. Falo aqui de um universo de reflexão e produção experimentais que - em vez de basear-se em simplesmente trazer mais pessoas para uma suposta era da informação que estaria dada - busca desconstruir, criticar e interferir na maneira como as tecnologias operam dentro da sociedade. O objetivo aqui, ao contrário daquelas políticas compensatórias que buscariam uma maior distribuição de recursos já existentes, seria explorar novos caminhos potenciais das tecnologias digitais de informação e comunicação e das dinâmicas que elas despertam. Não se trata de um campo à parte. Parte dos projetos de inclusão digital definitivamente adentraram a arena da experimentação. Uma vez ali, acabaram se aproximando de outros campos que também estavam orbitando a ideia de cultura digital: ativistas inspirados por movimentos urbanos internacionais, artistas trabalhando na fronteira arte/ciência/tecnologia, hackers desenvolvendo software livre e organizando espaços de trabalho autogeridos, empreendedores inspirados pelo universo do código aberto. Nesse contexto, uma construção que vai surgindo ao longo dos anos e sendo apropriada para diferentes finalidades é o laboratório - entendido aqui como espaço coletivo capaz de articular oportunidades, interesses e habilidades, e também como maneira de escapar às armadilhas do trabalho criativo orientado unicamente ao mercado.
Minha própria aproximação com os laboratórios aconteceu de maneira mais aprofundada a partir da experiência direta com o programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, mencionada acima. Eu fazia parte da equipe responsável pela implementação da ação Cultura Digital, que buscava proporcionar a apropriação efetiva das tecnologias de informação oferecidas aos Pontos de Cultura. Durante alguns anos, nosso trabalho foi organizar os Encontros de Conhecimentos Livres e as oficinas locais, além de promover a articulação em rede dos Pontos de Cultura. Os Encontros de Conhecimentos Livres eram ocasiões em que os Pontos de Cultura de uma região passavam cerca de cinco dias reunidos em imersão. O objetivo principal era mostrar a eles exemplos do que poderia ser feito com tecnologias livres, e também identificar indivíduos e grupos que tivessem o potencial para tornarem-se futuros replicadores das metodologias que então desenvolvíamos. As oficinas locais eram uma segunda etapa, já concentrada naqueles mesmos indivíduos e grupos com potencial. Tratavam-se de intervenções mais pontuais, que também duravam de quatro a cinco dias mas cujo objetivo era proporcionar autonomia a partir da capacitação técnica daquelas pessoas. A articulação em rede era desenvolvida de maneira continuada, incentivando que as pessoas envolvidas com os Pontos de Cultura buscassem através da internet a solução para suas questões, que publicassem sua produção com licenças livres e que criassem laços e conexões com outros Pontos. Participei da elaboração e implementação do programa como um todo, entre algumas das primeiras ideias em 2003 e minha saída em 2007.
Após alguns anos de atuação fortemente concentrada em eventos e oficinas, os indivíduos e coletivos envolvidos diretamente com o programa registravam algum esgotamento. A realização continuada de oficinas de formação havia de certa forma obscurecido o horizonte de produção autônoma daqueles grupos. O que havia começado como ativismo parecia estar transformando-se em mera prestação de serviços para o poder público. O termo laboratório ou lab começou a ser utilizado neste contexto, em parte pelo intercâmbio com projetos internacionais mas possivelmente também como maneira de escapar a uma percepção de esvaziamento ideológico ou estético dentro do contexto dos Pontos de Cultura. Começava então a despontar a denominação "hacklab"[8]: o grupo responsável pelo desenvolvimento dos sistemas de comunicação e demais soluções tecnológicas do Cultura Viva denominava-se hacklab. No final de 2005, organizou-se no Rio de Janeiro o Hacklab Immersion, encontro desse grupo para definir soluções para a Cultura Digital. Outras variações do "laboratório" também passaram a aparecer no entorno. No começo de 2007, alguns integrantes da MetaReciclagem ligados ao Cultura Viva organizamos em São Paulo o LaMiMe (Laboratório de Mídias da MetaReciclagem), que ofereceu oficinas abertas de tecnologias livres para produção multimídia e promoveu um encontro pioneiro de pesquisadores, artistas e ativistas de diferentes partes do Brasil que atuavam em campos afins.
Diferentemente da usual associação da ideia de laboratório a espaços físicos permanentes, muitas vezes com acesso a infraestrutura de grande porte, esses autoproclamados labs buscavam proporcionar períodos imersivos de troca de conhecimento e produção, mesmo sem a intenção de permanência ou a necessidade de equipamentos de alta tecnologia. Refletiam uma facilidade em ocupar temporariamente os espaços, tratando o presencial como efêmero. Uma referência comum entre aqueles grupos envolvidos com a construção da cultura digital no Brasil eram as Zonas Autônomas Temporárias - TAZ (abreviação em inglês de Temporary Autonomous Zones), título de livro do autor anarquista estadunidense Hakim Bey lançado no Brasil em 2001 dentro da coleção Baderna da editora Conrad. As TAZ denominariam os únicos momentos nos quais a potência de liberdade pode tomar lugar de maneira efetiva. O levante e não a revolução deveria ser a meta da ação política. Sua utilização por grupos de artistas, ativistas e produtores culturais no Brasil daquela época pode estar associada a uma percepção de imobilidade e burocratização dentro das instituições culturais - o que justificaria a recusa em lutar pela criação de espaços formais de experimentação. Tais grupos, assim, fariam uso das instalações daquelas instituições, abrindo espaços de intervenção sem necessariamente se submeterem às questões do cotidiano e sua micropolítica. Concorria também a crescente utilização coletiva da internet: a permanência era delegada para a rede, a partir de sistemas online para mobilização, registro, troca e memória. Ecoando o imaginário tecnoutópico associado à popularização da internet - sobre o qual debateremos em mais profundidade no próximo capítulo -, a construção de identidade se daria não mais dentro de instituições burocráticas, mas sim a partir de grupos de afinidade auto-organizados através de ferramentas digitais.
De fato, foi justamente esse um dos pontos de tensão que surgiram quando representantes dos grupos Mídia Tática e MetaReciclagem participaram de um projeto de intercâmbio com Holanda e Índia no âmbito da plataforma Waag-Sarai, no segundo semestre de 2004. A plataforma tinha a expectativa de que os brasileiros envolvidos chegassem ao fim do processo com o plano para implementação de um "centro de mídia" em alguma metrópole brasileira. Entretanto, nenhum dos dois grupos selecionados demonstrou particular interesse em desenvolver suas ideias exatamente daquela forma. O que então se projetava como surgimento de algumas centenas de Pontos de Cultura oferecia um horizonte no qual as prioridades deveriam ser outras: parecia mais importante ocupar os diversos espaços existentes do que criar do zero uma nova estrutura. Mídia Tática propunha um laboratório itinerante, se possível em um ônibus equipado que pudesse percorrer diferentes localidades do Brasil (ideia que posteriormente seria levada a cabo por outros grupos como o Ônibus Hacker[9]); enquanto a MetaReciclagem buscava desenvolver metodologias de organização e articulação em rede que pudessem ser aplicadas em qualquer lugar - e acabou por adotar uma postura muito mais voltada à documentação e compartilhamento dos resultados de ações do que em ansiar por permanência em um dado lugar.
A tática de ocupar espaços institucionais de maneira dinâmica possibilitou a criação de áreas concretas de transformação e interferência na sociedade[10]. Funcionou também como resposta concreta à instabilidade das próprias instituições culturais brasileiras, que frequentemente mudam de rumos ao sabor dos ventos. Por outro lado, o foco na ocupação temporária também implica um inevitável desequilíbrio na relação entre as partes. A instituição (o patrocinador) usualmente mantém todo o poder de decisão no que diz respeito a recursos, parcerias, duração e composição de equipes. Os critérios de escolha para as temáticas de projetos, dessa forma, acabam se submetendo à visão de mundo da instituição. São valorizados a quantidade de participantes, o potencial de exposição e repercussão midiática, a associação com assuntos em voga em determinado momento. Ou, por outro lado, critérios subjetivos do indivíduo que "assina o cheque". É raro que estes ou aqueles critérios coincidam com os interesses dos artistas, ativistas, educadores ou pesquisadores envolvidos com - e por vezes principais interessados em - tais iniciativas. Outra consequência particular desse cenário é que mesmo aqueles projetos que anseiem por permanência precisam competir em desvantagem pelos mesmos recursos que os projetos temporários - mais fáceis de administrar por diversas razões, inclusive trabalhistas e fiscais.
Ainda assim, ou justamente sob essas condições, a ideia de laboratório temporário foi-se fazendo cada vez mais presente, ainda que reinterpretada de acordo com as questões e condições particulares do contexto brasileiro. Hoje, dezenas de iniciativas no país usam o termo laboratório para referir-se à ocupação de espaços para reunir pessoas com competências diversas e com uma agenda em comum, tenham esses espaços infraestrutura específica ou não, tenha ou não essa ocupação a intenção de permanência. Salas de informática em escolas, instalações em universidades, pontos de cultura e outros espaços culturais e mesmo a rua ou outros espaços públicos podem tornar-se laboratórios, a depender exclusivamente de existirem pessoas que o declarem. Um lab também pode existir como parte de um evento e depois desaparecer, ou então realizar-se de forma itinerante[11]. Nesse sentido, pode-se dizer que laboratórios não são: laboratórios acontecem. Costumam dirigir o foco menos à formação ou à capacitação do que a explorar possibilidades experimentais, participar do debate corrente sobre quais os futuros possíveis para as tecnologias.
No final de 2011, aconteceu no Rio de Janeiro a primeira edição do Festival Internacional CulturaDigital.Br. Herdeiro do Fórum de mesmo nome que havia sido realizado duas vezes em São Paulo em 2009 e 2010, o Festival havia não somente mudado de cidade como também de posicionamento. Enquanto um fórum soa como evento voltado a um público de especialistas ou grupos engajados, o festival sugere celebração, ao mesmo tempo em que também convida curiosos e até pessoas que ignoram totalmente seus temas[12]. Participei da curadoria, tendo ficado responsável por organizar o que acabamos chamando de LabX, um laboratório experimental temporário, durante os dias de realização do Festival.
Selecionamos propostas de participação de cerca de trinta pessoas do mundo inteiro, e tratamos de incentivar os participantes a trazerem seus próprios projetos em desenvolvimento, em vez de oficinas ou cursos. A lógica era que um laboratório não se constrói simplesmente com aulas. Pelo contrário, a intenção era que aquelas pessoas tivessem durante alguns dias a liberdade de dedicar-se a solucionar coletivamente questões que mexiam com seu próprio universo de referências e motivações. Alguns deles levaram obras em andamento que exporiam no mês seguinte em outras cidades, outros fizeram apresentações de softwares que estavam desenvolvendo. Houve debates sobre laboratórios, intervenções poéticas, testes de protótipos. Encontros casuais ocorridos ali resultariam em diversas parcerias concretas nos meses seguintes. Alguns, é fato, limitaram-se a realizar oficinas, como estavam acostumados. Mas o lab não exigia isso deles. Precisei insistir diversas vezes - não somente com o público que passava pelo espaço como também com os próprios participantes - que "laboratório não é escola". Ou seja, que não tínhamos horários de aula predefinidos, avaliações ou certificados.
Esse episódio ilustra um aspecto importante a respeito dos labs experimentais em rede: frequentemente, eles estão situados em lugares nos quais existe mais liberdade de atuação do que as pessoas estão acostumadas a lidar. De que maneira o lab se articula com outros espaços no tecido urbano? Ao contrário de outros lugares nos quais as mesmas pessoas costumam circular - como a escola e a Universidade, o escritório e o estúdio, o café e a praça pública, a lan house e o telecentro, o comércio, a moradia - o laboratório não tem um objetivo claramente definido. Será que essa indeterminação pode ser considerada como uma de suas características definidoras? Experiências brasileiras - como o encontro Upgrade!Salvador de 2006, que realizou um debate sobre arte contemporânea dentro de um ônibus urbano de linha; ou o festival Digitofagia, que proporcionou uma ocupação cultural do MIS/SP - têm muito a contribuir com a discussão internacional sobre labs experimentais. Nos próximos capítulos pretendo trazer elementos sobre esse debate em andamento, enumerando outros exemplos de labs na história recente, relatando meu contato pessoal com uma série de labs e assemelhados durante uma visita à Finlândia e por fim retornando justamente à questão da relevância dos labs na sociedade contemporânea e buscando caminhos para driblar sua sempre latente captura pelo mercado das novidades comercializáveis.
Entendendo estes dois termos de maneira que pode soar algo caricatural, mas que encontra eco no discurso de pessoas envolvidas com a cultura digital brasileira. Assim, a mutirão seria o esforço coletivo e impermanente voltado para a solução de problemas específicos, ao passo que a gambiarra seria a inventividade material do dia a dia, que transforma a precariedade em recurso criativo. ↩︎
Um dos principais marcos do modernismo brasileiro, o Manifesto Antropófago publicado em 1928 pelo poeta Oswald de Andrade apontava a hibridização entre culturas estrangeiras e nativas como elemento formador e aglutinador de identidade. A antropofagia costuma ser utilizada como referência para pensar a cultura digital brasileira, em especial no que se refere à apropriação de tecnologias (GARCIA, 2004; SILVA, 2011). ↩︎
É importante assinalar que na prática a juventude de classes médias e altas não enfrenta tais restrições no seu uso doméstico - fato significativo no que diz respeito às intenções subjacentes a essas iniciativas de inclusão. ↩︎
Esse tipo de perspectiva era bastante comum em projetos de inclusão digital desenvolvidos ao redor da virada do milênio, mas é importante ressaltar que essa visão está presente até hoje, particularmente em projetos de inclusão digital financiados por empresas comerciais ou fundações a elas subordinadas. ↩︎
Movimento cultural surgido no fim da década de 60 do século XX que misturava manifestações culturais tradicionais, influências da cultura pop e das vanguardas artísticas nacionais e internacionais. ↩︎
O Ministério da Cultura tinha então uma estrutura administrativa modesta para os padrões de Brasília. Quando se propôs a gerenciar um projeto que em sua primeira leva distribuía recursos para cerca de 160 organizações em todo o país, já enfrentava inúmeros problemas. À medida em que o programa crescia até abranger milhares de organizações, os problemas naturalmente se multiplicavam. ↩︎
A aproximação do então Ministro da Cultura com as licenças livres foi inclusive tema de reportagem de capa de uma edição da Wired, revista estadunidense que tem um papel central no imaginário da cultura digital, e sobre a qual falarei mais detidamente no próximo capítulo. ↩︎
No próximo capítulo exploro em maior detalhe as diferentes denominações utilizadas por laboratórios experimentais ao longo das últimas décadas e em diferentes contextos sociopolíticos, com especial atenção aos hacklabs e o imaginário político associado a eles. ↩︎
A facilidade em ocupar espaços institucionais foi de fato um dos fatores a viabilizar a concretização de iniciativas como a própria ação cultura digital dentro do Cultura Viva. Em meados de 2003, Claudio Prado, produtor cultural e amigo pessoal de Gilberto Gil, convidou dezenas de pessoas com origens e formações diversas - este autor incluído - a colaborarem com a elaboração e implementação de uma política pública de cultura digital a ser implementada pelo Ministério da Cultura. Formou-se assim o grupo que se chamaria "Articuladores" e durante cerca de dezoito meses construiria aquilo que veio a ser a base da ação cultura digital no Ministério da Cultura. Para este grupo, formalidades eram vistas como obstáculos burocráticos a ultrapassar, e um coletivo formado por pessoas com formações diversas e altamente motivadas - porque acreditavam operar uma espécie de TAZ - era altamente eficiente em dar os saltos que se necessitava (FOINA; FONSECA; FREIRE, 2005). Essa lógica de ocupação fazia com que a própria ligação com o Ministério da Cultura fosse em si uma contingência. Grande parte daquelas pessoas nunca havia planejado desenvolver um projeto para o setor público. Pelo contrário, só estavam ali porque as condições haviam surgido, quase por acaso. Posteriormente, boa parte delas retornaria às atividades artísticas, de pesquisa ou comerciais que desenvolviam antes. ↩︎
Conforme desenvolvido em projetos como o Laboca (Laboratório de Computação e Arte) de Jarbas Jácome, Jeraman e Ricardo Brazileiro, desenvolvido durante festivais como o FILE; o co:laboratório de Daniel Dias, Arthur Lima e Eduardo Silva que realizou encontros no Centro Cultural São Paulo; os encontros Hacklab desenvolvidos no SESC Pompeia de São Paulo por Radamés Ajna, Giuliano Obici e Guima-san; entre outros. ↩︎
O Festival também tinha mais autonomia em relação ao Ministério da Cultura, que desde o início daquele ano havia mudado radicalmente de rumo a partir da posse da nova Ministra, Ana de Hollanda - uma pessoa notoriamente ligada à indústria fonográfica tradicional, e consequentemente avessa às iniciativas de discussão de cultura digital e flexibilização de direito autoral anteriormente propostas por aquele Ministério. Durante a gestão de Ana de Hollanda, todos os temas ligados à cultura digital e às licenças livres foram praticamente deixados de lado. O Festival, assim, assumia naturalmente o papel de lugar de posicionamento político a favor do legado da cultura digital brasileira. ↩︎