Idealizador dos projetos ID21 e fonte.wiki, Felipe Fonseca, pesquisador/doutorando no OpenDoTT, compartilha um pouco de sua trajetória e traz sua visão crítica e impulsionadora - para além da questão do acesso às tecnologias digitais.
"Como a gente pensa nas possibilidades dessas tecnologias para que seja construído um futuro mais justo, mais equilibrado e mais democrático - no sentido de que as pessoas tenham mais voz, mais participação nas decisões sobre o que acontece com a vida delas?"
Felipe Fonseca, conhecido como FF
Participei de diversos projetos que orbitavam a ideia de Inclusão Digital
Quem me conhece a mais tempo sabe que eu sempre fui crítico de uma ideia superficial de que a questão da tecnologia em comunidades no Br se tratava meramente de inclusão, fiz parte da rede metareciclagem, fui um dos fundadores da rede metareciclagem e através da minha atuação nessa rede participei da construção de alguns projetos e também tive a oportunidade de contribuir com outros projetos que orbitavam essa questão.
Dentro da rede metareciclagem a gente costuma falar bastante sobre a apropriação crítica de tecnologias para a transformação social. Então não se tratava simplesmente de fornecer acesso a tecnologias às comunidades que não tinham acesso a elas sem interferência. E eu sempre lembro de uma frase que usamos bastante na metareciclagem e que nessa formulação veio através do meu saudoso amigo, colega e irmão Daniel Pádua, alguns de vocês conheceu o Daniel mas a frase que ele usava era: “tecnologia é mato, o que importa são as pessoas”
Hoje em dia isso é mais claro, se a gente pensa que hoje é mais fácil uma pessoa ter acesso a tecnologias digitais de comunicação a gente consegue visualizar que a grande questão não é o acesso e sim o que as pessoas fazem, especialmente como agente pensa nas possibilidades dessas tecnologias para que seja construído um futuro mais justo, mais equilibrado, mais democratio no sentido de que as pessoas tenham mais voz, mais participação sobre as decisões sobre o que acontece com a vida delas.
Bom então todas as questões eu tenho acompanhado, eu tive a oportunidade de
ajudar a formatar esse projeto a convite dos nossos colegas da Universidade de Bristol
Fico muito feliz de ter esse papel e de ter a liberdade de trabalhar para construir esse projeto de uma maneira aberta e colaborativa. Então quando surgiu esse convite em vez de eu falar vamos juntar uns pessoas para sentar e ver quais são as coisas que já foram publicadas e vamos fazer a nossa versão sobre o que significa inclusão digital, com todas as ressalvas que a gente costuma fazer, foi possível adotar essa postura de que a gente ia convidar a pessoas com experiência em projetos comunitários de desenvolvimento que usam tecnologia, que não necessariamente se concentram no acesso à tecnologia mas que tenham uso bastante interessante, criativo, inovador, justo e includente das tecnologias em diferentes casos.
Então eu fiquei muito feliz de poder convidar as pessoas que enviaram os vídeos para esse projeto. São vídeos curtos, com opiniões bastante resumidas, eu tenho certeza de que cada um desses vídeos, são vídeos que de 5, 7, 10, 12 minutos, se a gente fosse puxar conversa daria horas de conversa com cada uma das pessoas por que cada uma delas tem inúmeras contribuições a dar para esse debate mas esses vídeos resumem um pouco as questões principais.
Então quando a gente decidiu desenhar esse projeto a ideia era trazer para os dias de hoje. Então não necessariamente a gente queria que as pessoas contassem a história dos projetos, não necessariamente a gente queria que elas falassem sobre qual foi a origem, embora isso tenha surgido, muitas pessoas trouxeram um pouco da origem dos episódios passados quando isso fosse relevante, mas a ideia era atualizar era pensar nos dias de hoje, estamos em 2021, estamos uma realidade em que grande parte da população tem acesso de alguma forma à tecnologias digitais, seja usando um celular com plano pré-pago que dá acesso a algumas redes e outras não e isso a gente pode até debater se isso é acesso à internet, se isso possibilita uma apropriação crítica ou não mas a gente não está mais em uma realidade em que não existiam dispositivos, em que a rede era uma coisa de outro mundo, então se a gente for lembrar há 20 anos atrás quando alguns daqueles projetos estavam sendo desenvolvidos ou concebidos, é bom lembrar que não existiam, por exemplo, redes de internet sem fio, não só as redes de internet por celular mas mesmo rede wi-fi era ainda uma possibilidade técnica longínqua. E eu posso falar da minha experiência com a rede metareciclagem quando a gente começou em 2002 já existia a possibilidade técnica de se conectar à internet através de antenas das placas wi-fi mas ali em 2002 aquilo ainda era uma coisa distante. Poucas pessoas entre os integrantes iniciais da rede metareciclagem tinham tido experiência com isso, a nossa experiência era a internet por cabo que já era uma evolução da internet discada dos anos de 1990. Então a ideia é atualizar, pensar nos dias de hoje em que grande parte das pessoas já têm algum tipo de acesso à comunicação digital através desses dispositivos: Quais são as grandes questões?
Então a gente tinha algumas pistas iniciais, por exemplo, questões de privacidade, segurança, questões de notícias falsas (fakenews) e o impacto que isso tem nos processos democráticos, a capacidade de eu usar as tecnologias para criar meus próprios projetos, criar empreendimentos, as metodologias ágeis que existem por aí para organizar ideias em torno de recursos e equipe e possibilidades reais de transformar a realidade. Então a ideia é um pouco atualizar essa discussão não pensar simplesmente na inclusão digital como acesso mas pensar em como a tecnologia pode melhorar a qualidade de vida de comunidades no Brasil, especialmente comunidades que historicamente foram alijados dos processos de desenvolvimento que são economicamente excluídas e assim vai.
Tem um monte de contribuições quem está assistindo esse meu vídeo agora já pode também acessar no canal do coletivo Neos no YouTube ou nos outros lugares que estamos publicando esses vídeos pode acessar esse material e dar uma olhada nas contribuições, a gente está trabalhando também em um resumo que vai ser uma análise das contribuições para ver quais são os elementos em comum, quais são as particularidades também que surgem mas eu senti falta de contar um pouco mais sobre o episódio que aconteceu no Brasil e ele tem um significado bastante importante e eu acho que isso tem a ver também com diversas outras questões que a gente está vivendo. O Brasil foi pioneiro na implementação de espaços comunitários de acesso à tecnologia e existem experiências que foram criadas no Rio Grande do Sul, lá por volta da virada do milênio mas eu acho que um dos casos emblemáticos foram os telecentros comunitários da Prefeitura de São Paulo que na época se conta que foi a maior implementação de ambientes gráficos de nome usando o Debi[a] e o Linux. Foi um grande projeto, eu não lembro do número exato agora mas tem alguns colegas que até já falaram em alguns outros vídeos que participaram da criação desses telecentros e poderiam confirmar mas se eu não me engano chegou a ter quase 200 espaços comunitários de acesso à internet somente no município de São Paulo. Eu vou chutar um número, talvez tenham sido 184 mas enfim sei que é possível que eu esteja enganado. O que é interessante é que eles eram espaços que se propunham a oferecer acesso gratuito à internet para as pessoas que não tinham mas ao mesmo tempo para pessoas que tinham acesso em casa e eles se tornaram não só espaço de acesso à internet como também espaços sociais, espaços comunitários em lugares da cidade que não necessariamente esses espaços comuns existia. Então eles tinham um significado muito maior do que simplesmente a pessoa sentar na frente do computador e se comunicar com outras pessoas que não estavam ali, pelo contrário, tinha um aspecto de conectar pessoas que estavam na vizinhança e muitas vezes não exerciam essa proximidade. Então aquilo foi um experiência bastante interessante que influenciou a compreensão sobre o papel das tecnologias que a gente tinha no Brasil e também em outros lugares e serviu como referência para outros lugares. Claro, não é uma experiência originária do Brasil, se eu não me engano teve outras referências na América Latina que já trabalhavam com esse formato, inclusive esse nome Telecentro não veio originalmente do Brasil mas eles foram implementados com bastante sucesso na cidade de São Paulo e deram origem a um monte de iniciativas. E eu me lembro de ter oficinas de arte digital, oficinas de organização social, oficinas voltadas a idosos sempre acontecendo nesses espaços.
Quando a gente chega ali na virada da década de 2010 para 2011 aconteceu uma grande mudança na maneira como se entendia a ideia de inclusão digital. Então assim aquela experiência inicial dos telecentros influenciou uma série de projetos que a partir de 2013 foram implementados do âmbito Federal então eu me lembro de projetos que ou se denominavam projeto de inclusão digital ou não se denominavam como inclusão digital mas trabalhavam na mesma linha de espaço comunitário de acesso à internet que eram desenvolvidos por diferentes organizações, diferentes instituições, diferentes autarquias e ministérios do Governo Federal. Por volta de 2011 houve a intenção de unificar, centralizar esses projetos em torno de uma secretaria e ali ocorreu um embate entre modelos e eu vou evitar nome as pessoas mas foi bem claro que naquele espaço na Secretaria Nacional de Inclusão Digital que em determinado momento passou a coordenar todos os projetos em vez de ter eles de maneira descentralizada acontecendo, existiu esse embate entre o modelo, existia um grupo que vinha principalmente influenciado por essa experiência dos telecentros comunitários de São Paulo que propunha que inclusão
digital era um assunto que deveria ser enfrentado de forma coletiva e comunitária a partir de espaços comuns nos quais o acesso à internet e o acesso às tecnologias era uma das coisas entre outras que poderiam acontecer. E existia uma outra escola dentro da secretaria nacional de inclusão digital que propunha que aquele assunto deveria ser
enfrentado e de uma maneira individual ou seja a partir da oferta de equipamentos e
conexão à rede mais baratos para as pessoas terem em casa.
E eventualmente essa visão venceu com uma visão de que o mais importante, em vez de coordenar centenas de projetos de comunidades que era realmente uma dificuldade logística,, uma dificuldade e operacional e administrativa inclusive burocrática e fiscal, quem esteve envolvido com projetos como GESAC sabe como era complicado, ou com os próprios pontos de cultura do ministério da cultura, sabe como é complicado sincronizar a chegada dos equipamentos, as oficinas de capacitação, a assistência técnica, o suporte e a manutenção daqueles equipamentos mas talvez um pouco até por uma certa inércia e por conta dessa dificuldade operacional e logística de levar à frente essa visão comunitária descentralizada venceu essa perspectiva segundo a qual o que bastava era influenciar a indústria a oferecer equipamentos mais baratos e as operadoras de telecomunicações a oferecerem acesso à rede por um preço menor. E eu acho que a gente perdeu muito em termos conceituais quando essa visão venceu porque tudo aquilo que a gente tinha construído da possibilidade de tratar inclusão digital como um assunto comunitário, coletivo, de construção do comum e de educação política a gente perdeu para uma visão individualista, competitiva que, para mim, contribuem bastante ou pelo menos está bastante alinhada com essa visão neoliberal o individualista, polarizada que a gente vê hoje na sociedade.
Então do ponto que eu vejo hoje eu imagino, eu espero que essa nossa construção coletiva agora possa influenciar futuros projetos de inclusão digital em diferentes partes do Brasil pensando que vai existir um momento em que a gente possa começar a reconstruir o nosso país. E aí eu espero que a gente possa retomar essa ideia de que tecnologias podem sim melhorar a qualidade de vida das pessoas e das comunidades mas que isso primordialmente deve comunitária nas quais as pessoas também assumam responsabilidade pela gestão dos espaços e não fiquem simplesmente esperando que as coisas sejam simplesmente mais baratas ou mais acessíveis.
Então assim é a minha contribuição para a discussão e eu espero que a gente possa e\ voltar a sonhar nessa construção coletiva de um país mais solidário, mais justo, mais sustentável no qual o bem viver, o bem-estar do coletivo estejam no centro e não a competição, o individualismo, a exclusão e as desigualdades. É isso, mando um abraço para todo mundo que participou do projeto e espero que a gente possa continuar e construir mais coisas no futuro.